quinta-feira, 29 de maio de 2014

Querer-se livre

A vizinhança inteira conhece  Rebeca. Não porque ela é simpática (essa é a última coisa que ela sabe ser); a conhecem pelas roupas estranhas e o cabelo despenteado, combinando com a saia riponga e os chinelos de couro, a música perfeita. Tímida, ao sair de casa e encarar os vizinhos, às vezes balbucia um "Oi" baixo, sem graça, assim como sua estatura de ombros caídos pra frente, pois tem medo dos olhares que atrai e sabe o que pensam a seu respeito: maconheira, rebelde sem causa. Mas a única coisa que ela quer é fazer o que tem vontade, sem precisar se vestir da maneira que querem, sem precisar ter a mesma opinião que todo mundo.

Dona Lindalva, moradora da casa de muro azul e portão branco de número 63, sempre estica o pescoço quando Rebeca passa tentando ser invisível e se esquivando dos olhares na rua. Ao contrário de toda a vizinhança, a senhora de cabelos cor de nuvem não julga Rebeca por sua aparência desleixada e um tanto desengonçada, mas admira a coragem da moça, atributo que não teve quando jovem. Lindalva sempre vê a menina sair, às vezes com os pés no chão e amigos em volta, com um jeito solto, mochila nas costas, pronta para abraçar a vida, e ao se apoiar na janela, reflete como todo o espetáculo de aproveitar a juventude passa rápido.

Casamento marcado, 1955. Dona Lindalva não casou com o homem de sua vida, nem por amor, mas por um relacionamento exigido pela família por causa de um feto cuspido em seu ventre. Antes de saber o que era liberdade, antes de abraçar o mundo ou completar os estudos, viveu a vida presa à um casamento que aos poucos virou amor, por costume, talvez. Mas ainda lembra de Bruno, o amor de sua vida. Olhos escuros, cabelos compridos e um sorriso radiante. Lhe chamava de Linda e os dois faziam planos de felicidade eterna. Ano passado recebeu a notícia que fez doer ainda mais seu coração: Bruno faleceu.

A senhora não reclama de sua vida, pois por mais que não tenha passado os anos com o amor que sonhou em ter, casou-se com um homem que sempre lhe respeitou. Porém, dona Lindalva carrega no olhar o peso da vontade de ter sido livre como Rebeca, explorar o mundo da maneira que quer. Nunca foi uma mãe que carrega os filhos numa bolha, justamente por ter sentido o peso do sufoco de não poder gritar.

Ao olhar pela janela, dona Lindalva tenta resgatar da doce criatura que dança entre as árvores da rua, um pouco da liberdade que um dia imaginou ter, e exalta: "Vive, Rebeca... e não deixe que esses olhares lhe parem!"

A vizinhança inteira conhece dona Lindalva. Não porque é a avó que todos querem ter. Mas porque sabem da dor que carrega em seu coração.