segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Morfina

Eu preciso reviver tudo. Eu preciso tirar da caixa cada memória. Botar na vitrola cada música. Chorar e cantar junto, no tom incorreto, no tom da dor. Eu preciso viver a perda. Não vai me matar. O que não nos mata nos fortalece, certo? E dizem que, quando a gente está prestes a morrer, a vida toda passa diante dos nossos olhos. E eu tenho que deixar isso morrer. Tenho que botar o amor na cama, cobri-lo até o pescoço, fazer uma balinha de cobertor, niná-lo feito criança - porque ele foi meu filho, no fim das contas. E, quando estiver bem adormecido, injetar bem no fundo de sua veia infinitas doses a mais de morfina do que qualquer ser vivo possa suportar. Eu preciso pôr o amor na cama. Eu preciso adormecer o amor. É preciso deixar morrer. Viver para deixar morrer. Reviver, relembrar. Relembrar é viver, não é? Então eu preciso relembrar tudo e lamentar cada momento bom que já está nas antigas. Chorar pelo que não volta - e chorar justamente porque não volta. Não se morre sem que se recapitule a história toda - afinal, o que está abafado está apenas abafado. É preciso revirar tudo, passar os olhos em tudo. Não se desapega de nada sem dar adeus.
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(Mas bem quando eu penso que a morfina já fez efeito, vejo que é alarme falso. Fazer morrer é muito, muito mais difícil do que se pensa. Outra fala que circula pelas ruas é a que diz que morre-se um pouco quando se mata alguém. Acho que, nesse caso, aconteceu o contrário. Estou tentando assassinar o que já corroeu boa parte de mim. O amor é como o câncer. Arranca muito da gente antes que possamos definitivamente arrancá-lo das nossas entranhas).

Um comentário:

Mahaaka - Aum Budhaia Namarrá disse...

não acredito no passado, imutável. gosto do futuro, e ainda mais do presente... mesmo virando passado a cada segundo.

Gosto do que sinto agora, relembrar não é viver. pra mim é abstrair o que não gostamos de presenciar, e se refugiar num oásis que não existe mais.

gosto mesmo é do futuro...